Antes de mais nada gostaria de adiantar que este conto não é meu. Vi-lo em outro blog, e como sou muito fã de Kally resolvi compartilhar aqui.
O cálice
Autor: Trevisan do forum
http://www.animetotal.com
O silêncio ecoava pelos vastos corredores do tribunal de Khalmyr.
Em Ordine, O Reino do Deus da Justiça, nada se movia. Ninguém
caminhava pelos largos caminhos de suas perfeitas planícies. Nenhum
pássaro voava entre as uniformes nuvens que cruzavam o límpido azul do
céu. O salão, normalmente ocupados pelas almas de artonianos mortos –
esperando serem recompensados ou punidos pelo o que fizeram em vida –,
não abrigava ninguém. Tudo porque ele assim o desejava. Tudo porque
assim era preciso.
Na câmara principal, dezoito lugares encontravam-se vazios na enorme
mesa colocada no meio da sala. Na mesa, um vasto mapa representava
Arton, seus habitantes seguindo suas vidas como diminutas formigas, sem
saber que eram observados.
Apenas dois lugares permaneciam ocupados. As únicas evidências de que
mais alguém havia estado presente eram os cálices vazio, símbolos do
pacto e da concordância com o que havia sido decidido. E que aconteceria
em breve.
Khalmyr observava fixamente seu companheiro. Podia ver coisas que os
mortais nem sabem existir, mas mesmo assim não percebia qualquer sinal
de medo ou hesitação. Muito pelo contrário.
Os olhos púrpuras brilhavam e pareciam sorrir. As mãos, repletas de
anéis intricados dos mais variados metais, brincavam com um dos cálices.
O longo cabelo trançado mesclava as cores azul, branca, anil, negra,
verde e vermelha. As jóias que cobriam seu peito nu e a longa capa que
adornava as largas costas mostravam orgulho, empáfia, nunca
arrependimento ou remorso.
Outros dois haviam passado pela a cerimônia com pesar e dor. O
terceiro, por outro lado, parecia chegar de uma festa onde havia sido o
convidado principal. Parecia tudo, menos o que realmente era.
Um deus condenado.
Khalmyr apoiou as mãos sobre a mesa e levantou-se, por fim. Não por impaciência, mas porque tinha que ser assim.
- Sabe o que tenho que fazer, não ?
O outro pareceu não ouvir. Estava aparentemente entretido demais,
divertindo-se com o objeto que tinha nas mãos. Somente instantes depois,
dirigiu um olhar distante ao Deus da Justiça. Parecia absorto em
pensamentos muito mais importantes.
- Por que os outros foram embora, Khalmyr ? Por que não ficaram para
ver o fim do espetáculo ? – sua voz era doce, clara como o vento
passando entre estalactites de uma caverna de cristal.
- Nenhum deles precisava ficar.
- Sim... sei bem disso – respondeu o outro, levantando-se devagar. –
Mas ninguém abriu mão de seu precioso voto quando Tilliann foi jogado
entre os bárbaros naquela carcaça demente e inútil. Ninguém deixou de
opinar quando a bela e inocente Valkaria foi transformada em estátua,
esperando de joelhos por heróis improváveis. Todos falaram. Alguns
acusaram, alguns pediram clemência. Mas todos julgaram. Até mesmo Marah e
Lena.
Ergue as sombrancelhas.
- Porque é diferente comigo ?
- Você nunca foi o mais querido. Nem o menos temido.
Lá fora, grossas gotas de chuva começaram a cair de repente. O sol,
que há pouco brilhava imponente, escondeu-se com pressa atrás das nuvens
negras recém-formadas.
O outro gargalhou. Por instantes, o palácio pareceu tremer.
- É verdade meu nobre Khalmyr – retrucou, dando a volta na mesa. O
cálice dançando entre seus dedos, passando de uma mão para outra como um
brinquedo nas mãos de uma criança, os anéis tilintando na superfície
cristalina. – Mas mesmo assim faço parte da família, não faço ?
- Você escolheu seu próprio destino. Nossas leis são claras. Aceitar seu destino com honra é a única coisa que lhe resta.
- Khalmyr, meu caro ! Não me venha falar em leis ou honra ! Eu estava
lá quando as duas foram criadas, lembra-se ? Eu e você !
Khalmyr baixou a cabeça, resignado. Talvez tivesse deixado fugir um
suspiro impaciente. Mas não era capaz de entender tal sentimento. Nem
era capaz de deixar fugir coisa alguma.
O outro caminhou até a parede mais próxima. Ali, uma enorme tapeçaria
retratava a união entre o Nada e o Vazio. O nascimento dos deuses.
- Ainda me lembro como era no início. No outro lugar. Você se lembra ?
- Às vezes.
- Fui um dos primeiros a ser criado e um dos primeiros a criar. Jamais
vou me esquecer. A sensação de poder... a energia fluindo enquanto
moldava a vida na forma mais perfeita que a existência já conheceu. Você
nunca experimentou isso. Por isso não entender. Os outros talvez não se
lembrem, ou tentem esquecer. Mas eu lembro. Lembro muito bem...
Khalmyr bem sabia, aquela simples lembrança era uma ameaça a ser eliminada.
Aos poucos aproximou-se da mesa novamente. Num movimento rápido,
imperceptível para olhos mortais, devolveu o cálice à mesa. Desta vez
invertido, com a boca para baixo.
- Sabe me dizer o que é isto, Khalmyr ?
- Um cálice.
- Tem certeza ? – um sorriso zombeteiro dançando nos lábios. – Um
objeto é apenas o seu nome ? Ou seria sua função, seu destino ? Se
tentássemos preenchê-lo com vinho, assim como está, não teríamos
sucesso. Mas mesmo assim...
- Mesmo assim o cálice ainda é um cálice.
- Exato – disse, como um sábio que aprova a resposta de um ignorante. –
As leis. As regras. A honra. São como o cálice, Khalmyr. Há sempre um
modo de torcê-las, virá-las de cabeça para baixo. E mesmo sem servir
mais a seu propósito original, continuam sendo o que eram, continuam a
reger a quem regiam. Leis. Regras. Honra.
- Onde espera chegar com isso ?
- Oh, a lugar algum – afastou-se novamente. – Acho até que já tomei demais o seu tempo.
- Errado – respondeu Khalmyr, aproximando-se de seu companheiro.
Passos firmes ecoando pela sala, a mão direita sobre o cabo da espada. –
Não se pode tomar tempo de um deus.
- Tem certeza ? – retrucou o outro. Enquanto falava, ajoelhou-se e
despiu-se. Primeiro o manto. Depois, as jóias. – Pergunte a Valkaria,
daqui a um milênio ou dois.
Khalmyr desembainhou Rhumnam, sua espada sagrada, a lâmina reluzente
refletindo a luz dos globos espalhados pela sala. Ergueu-a acima da
cabeça do outro deus.
- Você contrariou as leias do Panteão. Contribuiu com Valkaria e
Tilliann, na criação do povo que não deveria haver. Distorceu nossas
normas para tramar minha queda e a de meus aliados. Deflagrou uma
guerra. E por pouco não destruiu todos nós.
O outro continuou sorrindo.
- Por seus crimes além do perdão, Kallyadranoch, eu o condeno ao esquecimento.
O silêncio imperou por alguns instantes, até ser cortado pela gargalhada afiada do deus ajoelhado.
- Ah, mas alguém irá se lembrar. É a lei. Tilliann sempre saberá quem
foi. As crias de Valkaria um dia irão se esconder sob sua sombra, feito
passarinhos sob as asas da mãe. E quanto a mim ? Quem irá se lembrar de
Kallyadranoch ?
O Deus da Justiça permaneceu impassível. A espada firme em suas mãos.
O outro levantou a cabeça em desafio. Os olhos brilharam. Seu semblante parecia ameaçador. Mais fera do que homem.
- Sempre seis de meus filhos irão se lembrar, e carregarão meu legado.
E enquanto ao menos um deles viver, eu viverei. Nem você, nem qualquer
dos demais podem mudar isso. É a lei. Jamais se esqueça, Khalmyr.
Mas dois trovões ecoaram, quase em uníssono. Duas gazelas passaram
correndo em frente ao palácio e procuraram abrigo embaixo das formas
perfeitas de duas árvores no simétrico jardim frontal.
- Eu já disse tudo. Acabe logo com isso. Cerimônias sempre me deixam entediado.
Rhumnam girou acima da cabeça de Khalmyr, riscando um círculo de luz
brilhante. A lâmina cortou a realidade com um silvo agudo e
ensurdecedor.
- Adeus, Deus dos Dragões.
Kallyadranoch sorriu mais uma vez.
- Até logo, Deus da Justiça.
A espada desceu repentina. A lâmina enterrou-se no peito do deus
condenado, o urro de mil dragões foi ouvido em toda Ordine.
Kallyadranoch desapareceu como se jamais houvesse existido.
E jamais havia existido.
Khalmyr embainhou calmamente a espada. Tudo estava certo novamente. Tudo estava em ordem.
Aos poucos, pôde ouvir o leve sussurro das almas voltando a preencher o
salão, aguardando seu julgamento justo. Lá fora, a chuva parou de modo
tão brusco quanto havia começado.
Khalmyr caminhou em direção da saída. Parou por alguns instantes,
seguiu até a mesa, e só então saiu para retomar seus eternos afazeres.
Na câmara principal, agora vazia, silenciosa e estéril, tudo permanecia como se nada tivesse acontecido. E nada acontecera.
Todos os cálices tinham a boca voltada para cima.